CARNIVALAND
O Parque de Diversões Aquático
Em mundos mudos onde só o belo se ouve. Foram tantos gritos, assobios, loucura de estar ali. Pomos de parte a vontade de criticar – por favor – e existe uma compreensão total, a clareza de que os obstáculos fazem parte da magia.
Felizmente o trance não é juntar dinheiro para o bilhete, dinheiro para a viagem, dinheiro para o consumo e conforto. O trance tem a peculiaridade de nos entregar uma mensagem: ‘é isto que vale a pena. É aqui que EU quero estar’. E, portanto, existirão sempre obstáculos: pessoais e coletivos, mentais e físicos, ambientais e até sociais (ou quantas vezes não fugimos à ideia dos nossos amigos estarem à porta a revistar). A entrega está em partir as correntes do nosso dia-a-dia e fundirmo-nos com todo aquele ambiente – e isso é um trabalho, não se vira a página e estamos fundidos com a rave, é um processo digno de honra e a chuva manifestou-se para que pudéssemos estar totalmente presentes ali. Talvez alguns necessitassem de aprender isso e todos fizemos parte de uma lição unida – ser feliz a todo o custo, estar grato por todos os que nos permitem a felicidade e entregarmo-nos à mercê do dance.
Chegamos com nuvens escurecidas e o magnifico som da fúria dos mares. As ondas no fim do areal eram uma visão sublime do poder da tempestade: que tudo consome. É nesta loucura que pertencemos hoje, a natureza em fase de total transformação. Criando novo espaço para o florescer da primavera, somos todos parte de um processo lindíssimo quando nos damos conta – saímos da cidade para sermos parte da natureza, então, não podemos exigir à natureza as condições de uma cidade.
A dada altura questionamos: ‘mas será que os escorregas estão abertos? Oh, mas deve estar tudo molhado...’ e em piada respondem-nos ‘Então, é um parque aquático, querias que estivesse seco?’. E todo o evento fez sentido, a praia, os escorregas, o caminho, o dance... A perfeição aquática num dos finais de semana mais chuvosos do ano. Portugal a sofrer de escassez e nós a fazermos a verdadeira Dança da Chuva.
Alegramo-nos com tudo: as pulseiras mais macias e brilhantes; o caminho mais labiríntico e o dance mais caloroso. Até os pequenos negócios souberam tomar o seu espaço e alegrar a comunidade – ou não notamos uma barraquinha com space cakes? E vegan burgers? Ah, e o bar indoor? Que ideia deliciosa!
Sentimos a ânsia de esperar pelo som – como tudo o que é belo e controverso deve ser. A caminho da tenda, sentimo-nos fadas num pântano do Mundo das Fantasias ou magos em busca do castelo do Dragão: onde se encontra a Fonte da Felicidade. Por vezes, naquele caminho já martirizado pelos corajosos viajantes de outros reinos e tempos, sentíamos que os nossos passos eram como flores de lótus que crescem nos sítios mais improváveis – improváveis porque parecem desprovidos de beleza, lótus é a flor que vem afirmar que a beleza está em todo o lado.
Aclamamos uma noite inteira de frenesim. Somos felizes aqui, sim? É que passar a ponte que separa a terra do castelo mágico e mostrar a pulseira de acesso faz-nos sentir que é por isto que movemos mundos e fundos – o trance não é dado de mão beijada, é conquistado, pela luz, pela vontade, pela gratidão.
Entrar naquele castelo e sermos envolvidos pela loucura psicadélica e uns decors de excelência. As flores que se esculpiam em cima da coluna, podíamos dizer que nos cativaram muitas vezes ao longo da noite. A louca espécimen no topo do dance, frente ao stage foi também algo de maravilhoso, explorar aquelas formas foi – hm – talvez o que imaginamos ser o mundo da Alice. E, claro, toda a decoração envolvente, é isto que queremos que sejam todas a exposições de arte: perfeitamente alinhadas com som e seres vivos, uma imagem da natureza em cores psicadélicas.
Noite, dias finais da Lua Cheia, o céu abre-se para a luz e os caminhos das estrelas orientam-nos. Somos cativos da gruta psicadélica, da areia molhada que é como uma almofada para os nossos pés – tão bom, aqui podemos realmente abrir buracos no chão! E o som – o perfeito. Só a espera tornou-o mais desejado, só o line-up tornou-nos sedentos desse alimento. Sinceramente, foi ao encontro da tempestade, quem fitasse as ondas na praia e a velocidade que passou ‘-a’ e na’quela noite encontrava senão a perfeita sintonia.
O hitech, tão belo, perfeitamente tratado para nos tirar do chão e pôr a exclamar por TUDO, desde gritos de euforia a sentimentos de êxtase. Quem não se deixou abalar pela necessidade de criticar ou pôr tudo no seu ‘ideal gostinho’ e se deixou levar pela emoção partilha certamente esta opinião: fomos bem tratados por hitech e dark e foi uma noite que superou as expetativas.
Metahuman, Technical Hitch... um puxar de BPM’s com alguma frenética impossível de resistir. Um total trabalho de energia, concedendo-nos com vários géneros de som sempre na velocidade certa para nos tornar cativos desta viagem. Um coletivo extraordinário.
E quando Technical Hitch... quando tudo – começou, transmutou, desenvolveu, transmutou mais um pouco, terminou. Foi delicioso, o Oriental indiano alia-se com o melhor do trance, a velocidade dá gás às nossas luzes internas e as auras mudavam de cores como o set. Ancas, pés, pernas, movimentos quase ‘esquizoides’ de pescoço, ombros e braços. Danças femininas, masculinas, poder e fluidez num curto espaço de tempo. Portanto, o verdadeiro auge da noite. É mágico quando notamos que os artistas trazem o seu tudo para o dance e este foi esse caso. Saudades de sentir o dark de Technical Hitch, expetativas elevadas de sons como The Princess. Mais dark? Podia, mas o desejado já tinha sido ultrapassado, posto num foguetão, carregado com combustível e enviado para outras galáxias.
O dia ganhou cores quentes e acolhedoras, os caminhos tornaram-se mais visíveis e seguros, e o castelo já não trazia a euforia da noite, mas a criatividade do dia. Uns dormem, uns acordam, outros... talvez ainda estejam por aí. É o corpo que nos diz que não devemos ir para casa, é a alma que nos pede para ficar e o som deslumbra-nos com as infinitas possibilidades de dança, de expressão. Somos felizes, sim?
Amor, compaixão, abraços, união, é sempre mais do mesmo, mas este mesmo é tão raro de encontrar em qualquer outro lado que não este. Sejamos conscientes do que trazemos para uma tenda fechada porque a vibração permanece ali, altera-se ali, funde-se com outras ali. É essa a poção mágica que levamos para o trance – a fusão dos ingredientes de cada um.
E todos pertencemos a algum lugar porque o dance tem um espaço para nós como nós temos um espaço para o dance. E a vibração por vezes leva-nos ao frente-a-frente com a coluna, outras vezes ao deslumbrar do artista no stage; por vezes queremos estar do lado de fora a dançar outra somente no canto com os amigos; por vezes estamos com mais atenção às coisas e aos amigos malucos do que a apreciar o som em si, mas o amor continua lá, apenas em cargos diferentes; e talvez gostemos de estar mais atrás porque temos mais espaço para dançar, talvez nos apeteça estar no carro ou no parque, talvez no chill out. Apesar de tudo, existe sempre espaço para a nossa condição e no final recordamos sempre a rave como um momento feliz, presente – porra, até com dores de barriga, cabeça, um braço ou perna em gesso, a rave continua sempre a ser F-E-L-I-Z.
Escrevo nós sem noção fixa da opinião dos demais. Talvez seja apenas o que eu senti. De qualquer modo, foi bom, foi belo, gostei e sonho por mais. Regressando a Lisboa, minha casa, nada é o mesmo sem o som de fundo, sem a excitação e a vossa presença. Talvez a felicidade tenha mesmo que ser tomada em poucas doses para não acabar. Até breve, seres de alguma outra galáxia.
ARTIGO: Maria Rebelo
FOTO: Shanti Root